Abordagem discursiva do texto "Gigolô das palavras"

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar o conflito entre o discurso conservador (gramaticalista) e o discurso liberal, assim como a construção da ironia na crônica “O gigolô das palavras” de Luiz Fernando Veríssimo.


Palavras-chave: Discurso; Conflito; Ironia.

Palavras iniciais
A Análise do Discurso (AD) reconhece o texto como o lugar do trabalho com a
linguagem e de funcionamento da discursividade, dessa forma, não o tem como objeto final
de sua explicação. A tarefa do analista é descrever como funciona o texto, considerando o
seu caráter lingüístico-histórico, trabalhando a opacidade do mesmo e desvendando o
mecanismo dos processos de significação, que regem a textualização do discurso.

O objetivo deste trabalho é analisar a crônica “O gigolô das palavras” de Luiz
Fernando Veríssimo, identificando alguns aspectos como o conflito entre o discurso
conservador, gramaticalista e o discurso “liberal”, que questionava o ensino de língua
materna como sendo o ensino da gramática da língua.

"O conceito de formação discursiva é utilizado pela AD para designar o lugar
onde se articulam discurso e ideologia” (Mussalim, 2001, p. 125). O discurso, portanto, está
longe de ser produto de um sujeito específico, pois traz em si a ideologia da formação
discursiva que o originou.
Através da análise das marcas lingüísticas e dos implícitos de um texto pode-se
identificar a formação discursiva à qual se vincula.
Na crônica em análise pode-se perceber que o autor expõe e opõe duas questões
anteriormente já citadas, o discurso conservador e o liberal em relação ao ensino da
gramática. Isso se torna evidente logo no primeiro parágrafo, quando o locutor explicita
qual a “missão” daquele grupo de estudantes do Colégio Farroupilha em sua casa. O
professor de português os enviara para saber se ele, o locutor, considerava o estudo da
gramática indispensável para aprender e usar nossa ou qualquer outra língua.
Opondo-se a esse discurso, a resposta que é dada aos alunos é apresentada no
segundo parágrafo: “Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de
comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras
básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis.
A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não
necessariamente certo”.

Naquele momento histórico, o texto de Veríssimo foi considerado uma
verdadeira afronta à língua portuguesa e sofreu sérias críticas por parte do grupo mais
conservador de estudiosos da língua, no Brasil. A crítica irreverente à escola tradicional e à
visão gramaticista vigente do ensino de língua materna encontrou apoio, porém, daqueles
estudiosos mais liberais, que já reconheciam a necessidade de mudanças no modelo de
ensino do Português, o qual vinha se mostrando ineficaz já de longa data.
É bom lembrar que somente em 1998, mais de dez anos após a publicação da
crônica, ocorreu o lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCN, os quais
representam um grande avanço em relação ao ensino de língua materna nas escolas.
No texto de Veríssimo, a oposição entre o pensamento tradicionalista
(gramaticalista) e o liberal é ressaltada com muito humor, quando o locutor critica a atitude
de “patrulhamento”, exercida pelos ditos “puristas” da língua, dizendo que suspeitava que o
professor lia sua coluna e se “descabelava” com as suas afrontas às leis da língua. O locutor
imagina a defesa que faria do seu trabalho, utilizando-se para isso do jargão jornalístico:
“Culpa da revisão! Culpa da revisão”.
No final do terceiro parágrafo o sujeito locutor mais uma vez expõe a sua
indiferença em relação aos aspectos formais da língua, construindo metaforicamente o seu
discurso: “Não me meto na sua vida particular [das palavras]. Não me interessa seu
passado, suas origens, sua família nem o que os outros já fizeram com ela.”
Conhecer a vida particular, o passado, as origens e as famílias das palavras são
aspectos da Gramática Descritiva, da Gramática Histórica, da Etimologia e da Lexicologia
que na visão do locutor não interessam a um escritor: “... a intimidade com a Gramática é
tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na
matéria”.
O texto, portanto, revela, através do discurso do personagem narrador, o
conflito entre duas formações discursivas, e demonstra que se pode perceber sempre, numa
formação discursiva, a presença do outro e a heterogeneidade do discurso. O autor se
conduz de tal forma na construção do personagem narrador, que este, ora expõe através de
sua enunciação uma formação, ora outra, no espaço interdiscursivo.
A heterogeneidade constitutiva do discurso é abordada por Mussalim (2001)
como um estudo decorrente do dialogismo do círculo de Bakhtin, o qual não tem como
preocupação central o diálogo face a face, mas sim a dialogização interna do discurso, que
se instaura numa perspectiva plurivalente de sentidos. A partir do conceito de dialogismo
bakhtiniano é que se estrutura a definição de heterogeneidade constitutiva do discurso, a
qual assinala a presença do outro na superfície discursiva.

A irônia

No primeiro parágrafo da crônica, o sujeito narrador utiliza-se daquilo que
Charaudeau chama de estratégia de credibilidade, ou seja, determina uma posição de
verdade, de maneira que ele possa ser levado a sério. A credibilidade vai sendo construída
pelo uso de expressões literais como: “Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do
Farroupilha estiveram lá em casa, numa mesma missão...”
A partir do segundo parágrafo, o sujeito locutor constrói uma argumentação
representativa da formação discursiva que não vê utilidade no ensino da gramática em sala
de aula. Através da frase: “Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo”, o
locutor justifica a assertiva feita anteriormente: “A sintaxe é uma questão de uso, não de
princípios”. Ao utilizar o adjetivo claro modificando o verbo em vez de utilizar o advérbio
(claramente), como estaria ao gosto dos gramáticos, o autor quer demonstrar que conseguiu
se comunicar, apesar de não ter feito uso “correto” da norma gramatical.
A estratégia de sedução que o sujeito locutor utiliza inicia-se com a assertiva:
“O importante é comunicar”, logo após elabora metaforicamente a idéia do fazer literário
como algo que surpreende, ilumina, diverte e comove.
O final do segundo parágrafo é marcado por uma ironia mordaz. A estratégia de
convencimento se faz com o autor relacionando as razões para não se ensinar gramática e
associando-a à morte da língua. Utiliza-se para isso das seguintes expressões: “A
gramática é o esqueleto da língua”, “línguas mortas”, “necrólogos”, “gente pouco
comunicativa”, “sombria gravidade”, “reprovação pelo Português ainda estar vivo”,
“morra”, “caixão”, “autópsia”, “as múmias conversam entre si em gramática pura”.
Nos dois últimos parágrafos, o autor dá o tom irônico ao se apropriar do
discurso machista que se inicia com a frase: “Sou um gigolô das palavras”. O sujeito
locutor constitui seu discurso por analogia à relação do cafetão com a prostituta. Utiliza-se
de expressões que revelam sua intimidade e liberdade no trabalho com a palavra: “Um
escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão
ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse por seu plantel. Acabaria tratando-as
com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra
seria a sua patroa.”
Há uma sintaxe discursiva implícita na seqüência de frases: “vivo às suas
custas”; “abuso delas”; “exijo submissão”; “maltrato-as sem dúvida”; “são
faladíssimas”; “algumas são de baixíssimo calão”; “não merecem o mínimo respeito” e
“A gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda”. O autor
recorre a um discurso que não é o seu, trazendo para um contexto novo as frases acima
citadas, estas assumem uma ambigüidade característica da ironia.
A ironia é “um dos meios dos quais dispõe a argumentação
para expor as afirmações e teses que deseja sustentar”. No discurso escrito, o escritor faz
uso de estratégias para construir a ironia como, por exemplo, utiliza-se de:
“ palavras que não são ‘suas’ ou que toma ‘emprestado’ de
outras vozes, de outro discursos e de outras situações de
comunicação.[...] as palavras do ‘outro’, usadas em novos
contextos e por outros locutores, assumem uma caráter
duplo, [...] e será usado para subverter o significado
primeiro das palavras do ‘outro’.

Finalização

Como vimos, a finalidade da análise não é descrever nem interpretar, mas
compreender como o texto produz sentidos através de seus mecanismos de funcionamento.
Na crônica analisada, o humorista exprime sua insatisfação com uma visão
tradicional (gramaticalista) da língua e se insurge contra o conservadorismo das escolas e
suas práticas de ensino.
Luiz Fernando Veríssimo, no texto “O gigolô das palavras”, revelou todo o
seu humor cáustico construído através da ironia e da irreverência, levando o leitor a refletir
sobre o tema sério e polêmico que é o ensino de língua materna no Brasil.

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